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Bolsonaro surfa a onda antivacina: liberdade, saúde pública e Constituição
BlogJoão Gabriel Madeira Pontes[1]
Camilla Gomes[2]
(originalmente publicado no Jota.info)
Em 1998, o médico britânico Andrew Wakefield e outros coautores publicaram um artigo na famosa revista The Lancet que relacionava a vacina tríplice viral – responsável pela imunização contra sarampo, caxumba e rubéola – ao desenvolvimento de colite, transtornos comportamentais e autismo em crianças. Pouco tempo depois, o texto foi objeto de intensas críticas de ordem científica e ética, o que levou o Conselho Médico Geral do Reino Unido a cassar a licença profissional do seu principal autor, acusando-o de ter atuado em conflito de interesse e de forma desonesta, irresponsável e profundamente insensível com os menores que participaram da pesquisa. Os resultados das investigações também fizeram com que a revista se retratasse da publicação do artigo.
A carreira de Wakefield pode até ter caído em desgraça, porém a retórica antivacina continua viva mundo afora. Não à toa, em 2019, a Organização Mundial da Saúde – OMS afirmou que a relutância à vacinação é uma das dez grandes ameaças à saúde, considerando-se, por exemplo, o aumento de 30% dos casos de sarampo em âmbito global.
A propósito, estudo recente também apontou que as redes sociais aproximam ainda mais os adeptos dessa retórica, impulsionada por teorias conspiratórias que vão desde o suposto vínculo entre programas de imunização e o aumento de males não relacionados como alergias, convulsões e câncer, até o mito de que vacinas compostas por espermicidas estariam sendo usadas para fins de controle populacional. A disseminação da propaganda antivacina converteu-se em mecanismo de exploração política do ressentimento e da desconfiança de parcela dos cidadãos em relação às elites governamentais, que muitas vezes utilizam a ciência para legitimar a sua autoridade.
É nesse contexto que se inserem as manifestações de Jair Bolsonaro contra a vacinação compulsória de brasileiros em plena pandemia do novo coronavírus. No mês passado, ao ser abordado por uma correligionária, o presidente disse que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, frase que foi reproduzida pela Secretaria Especial de Comunicação Social no Twitter, seguida da seguinte mensagem: “o governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros”.
Dias depois, Bolsonaro ratificou a sua opinião, afirmando que “não pode amarrar o cara e dar vacina nele”. Além de consistir em reação negativa ao discurso científico – característica do anti-intelectualismo dos líderes autoritários de hoje e de ontem[3] –, o aceno do presidente ao movimento antivacina traduz à perfeição o sentido inconstitucional de liberdade que reside no seu próprio imaginário.
Não é de agora que Bolsonaro tenta reabilitar uma lógica pré-hobbesiana de sociedade, segundo a qual o indivíduo deve ser livre até mesmo para servir de lobo a outros indivíduos. Aos mais desatentos, talvez esse discurso soe liberal, quando, na verdade, sua mensagem desafia as lições inequívocas de autores clássicos do liberalismo como John Stuart Mill, para quem “o único propósito para o qual o poder pode ser exercido com justiça sobre qualquer membro da comunidade civilizada, contra sua vontade, é o de evitar dano a outros”.[4] Da defesa do armamento da população civil à resistência contra a vacinação compulsória, “[a] liberdade bolsonara é uma farsa pré-civil e pré-jurídica. Recusa limites em nome do bem comum porque seu instinto primitivo os percebe como ataque à sua virilidade”.
Como resposta à absurda concepção de liberdade adotada por Bolsonaro para atiçar as convicções ideológicas dos seus apoiadores mais ferrenhos, tem-se a Constituição de 1988. Com efeito, no sistema instituído pela nossa carta política, não há liberdades absolutas. Ao contrário, deve-se buscar harmonizá-las entre si, bem como estabelecer balizas legítimas para o seu exercício, em prol de interesses públicos relevantes, como a tutela da saúde coletiva (arts. 6º e 196, CF/88).
A Constituição brasileira funda um regime de solidariedade social no qual o gozo das liberdades individuais não pode implicar prejuízos injustificados a terceiros, sobretudo em tempos de crise sanitária. Tema, aliás, que o Supremo Tribunal Federal terá que enfrentar muito em breve, no julgamento do ARE n° 1.267.879, em que se discute se pais podem deixar de vacinar seus filhos por razões filosóficas, religiosas, morais ou existenciais.
Em seu longo ensaio sobre imunização, a escritora norte-americana Eula Biss se vale de uma bela metáfora para caracterizar a nossa vida em comunidade: somos todos jardins selvagens dentro de outro jardim, igualmente estranho e variado. “Seja qual for a maneira que escolhamos para pensar o corpo social, somos o meio ambiente uns dos outros. A imunidade é um espaço compartilhado – um jardim do qual cuidamos juntos”,[5] diz a autora. Para tanto, é certo que precisamos reconhecer e fortalecer os laços de solidariedade que impõem limites jurídicos às nossas ações individuais, em nome das metas constitucionais de defesa da saúde pública.
Somente assim é possível garantir, por exemplo, a proteção de pessoas cujas condições de saúde impedem a vacinação, em razão de imunodeficiências, de alergias a componentes das vacinas, ou de outras doenças pré-existentes. A imunização coletiva é, portanto, essencial para evitar o ressurgimento de enfermidades já controladas e para a contenção e a prevenção de novas epidemias.
Daí a importância de iniciativas como a vacinação compulsória. Nesse sentido, também se destacam, no plano normativo, as Leis n° 8.069/1990 e n° 13.979/2020. A primeira, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê expressamente que “[é] obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias” (art. 14, § 1º).
A segunda, aprovada pelo Congresso Nacional durante a pandemia, estabelece que, para o enfrentamento da emergência sanitária de escopo internacional que hoje atravessamos, os poderes públicos poderão adotar, dentre outras medidas, a “determinação de realização compulsória de […] vacinação e outras medidas profiláticas” (art. 3º, inciso III, alínea “d”).
Diferentemente do que sugere Jair Bolsonaro, para colocar em prática o programa de vacinação compulsória, não é necessário lançar mão da força ou da coerção física. De fato, existem meios mais racionais e constitucionalmente adequados que podem ser utilizados com esse fim.
É possível – e desejável – que o Estado se engaje na tarefa de convencimento da população, mediante propagandas que esclareçam os brasileiros acerca dos efeitos extremamente nocivos da não vacinação. Também se pode cogitar da aplicação de medidas sancionatórias proporcionais contra quem se recusar a vacinar a si ou a seus filhos, a exemplo da imposição de multas pecuniárias ou de restrições a direitos como a participação em concursos públicos ou a concessão de licença para dirigir.
Em última instância, ao incitar a resistência à imunização, Bolsonaro politiza questão de saúde pública em nome de interesses escusos. Nada mais distante da postura que se espera do dirigente de um país que, pela primeira vez no século, não atingiu a meta para nenhuma das principais vacinas infantis.
Contra governantes como o atual presidente, podemos contar com a boa ciência, com a divulgação criteriosa de informações e com a Constituição de 1988, mas, tal como ocorre com as vacinas, a maximização da proteção garantida por esses importantes instrumentos depende da ampla adesão coletiva aos princípios e aos valores que os informam.
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[1] Advogado e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[2] Advogada e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[3] Cf. Jason Stanley. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Tradução de Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2019, pp. 48-65.
[4] John Stuart Mill. Sobre a liberdade e A sujeição das mulheres. Tradução de Paul Geiger. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, p. 82 (grifos acrescentados).
[5] Eula Biss. Imunidade: germes, vacinas e outros medos. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Todavia, 2017.
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