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02
nov
2020

Nove medidas para um Judiciário racialmente inclusivo

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Wallace Corbo[1]

(originalmente publicado no Jota.info)

 

Na dia 20 de outubro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, recebeu o Relatório de Atividade Igualdade Racial no Judiciário. O relatório foi elaborado pelo o Grupo de Trabalho Políticas Judiciárias sobre a Igualdade Racial no Âmbito do Poder Judiciário (GT Igualdade Racial) e é um marco histórico no combate institucional ao racismo.

Em mais de duzentas páginas substanciosas – o que surpreende pelo tempo recorde de sua elaboração – o GT Igualdade Racial registrou dezenas de contribuições da sociedade civil e de autoridades públicas que objetivam promover um Poder Judiciário mais representativo de pessoas negras e responsivo à pauta antirracista.

Este texto sintetiza algumas das contribuições que apresentei em audiência pública sobre o tema em nome da Clínica UERJ Direitos. Para além das necessárias críticas teóricas e filosóficas, profundamente apresentadas no relatório, a pergunta de cunho prático que pretendemos responder era: o que pode ser alterado nas organizações e procedimentos do Poder Judiciário para produzir, no curto, médio e longo prazo as transformações pelas quais nossa sociedade não pode mais esperar?

Um pouco de teoria: temos visto nos últimos anos, algumas teses que buscam justificar a legitimidade do Poder Judiciário com base na ideia de que juízes seriam representantes da sociedade. É a tese, por exemplo, do professor e ministro Luis Roberto Barroso,[2] para quem Poder Judiciário pode exercer uma função representativa (argumentativa) da sociedade.

Sem nos aprofundarmos sobre o tema, destaco uma importante observação formulada pela professora e juíza Jane Reis[3] que expõe algumas dificuldades da tradução dessas teorias em termos de realidade. Especialmente quando falamos de raça.

A primeira dificuldade, que se extrai das reflexões de Jane Reis, consiste na ideia de que o Poder Judiciário padece, ainda hoje, de uma falta de representatividade identitária. Os números são fato notório: a participação de juízes e juízas negras na magistratura nacional é baixíssima. Se considerarmos as mulheres negras, a situação é ainda mais evidente.

A segunda dificuldade da tese da representação pelo Judiciário, ainda partindo do quadro teórico de Jane Reis,  consiste na falta de representatividade argumentativa desse poder.

A despeito dos substanciosos esforços recentes, nossa magistratura, como nossos profissionais jurídicos como um todo, não adota uma hermenêutica jurídica que leve a sério o problema da raça e do racismo no Brasil. Se o racismo não está no cerne do pensamento jurídico, é impossível descortiná-lo quando suas consequências são vistas em processos apresentados em juízo e em decisões judiciais.

Racismo não é um problema que surge apenas quando estamos diante dos crimes de racismo ou injúria racial. Ele perpassa a relação trabalhista envolvendo uma empregada doméstica; pode estar presente em relações contratuais racialmente desiguais; surge nas novas fronteiras do direito (em que se fala já na chamada discriminação racial algorítmica); surge nas mais tradicionais categorias jurídicas, como o poder de polícia ou mesmo, como lembrado por Livia Casseres na mencionada audiência pública, pela presunção de veracidade do depoimento de agentes de segurança (em detrimento, claro, da presunção de inocência de pessoas negras), além de outras.

A terceira dificuldade consiste na não-representatividade simbólica do Poder Judiciário. Nossos Tribunais são as últimas Cortes de uma sociedade republicana. E se por um lado merecem o mais elevado respeito e consideração de seus cidadãos, precisam ser simbolicamente compreendidos sob uma lógica republicana – a lógica de que o Judiciário pertence à e se volta para a cidadania – uma cidadania cujo perfil ainda é muito diferente dos juízes.

É necessário reduzir o distanciamento entre a população e o Poder Judiciário também no plano do imaginário social – sem reduzir a importância deste Poder, mas, pelo contrário, reforçando seu peso e presença na vida dos cidadãos.

Diante destes três problemas – a não-representatividade identitária, a não-representatividade argumentativa e a não-representatividade simbólica – algumas medidas podem ajudar a mudar esse quadro.

Evidentemente que é preciso pensar em mecanismos estruturais e estruturantes amplos para atingir uma transformação profunda e duradoura dos problemas que estamos analisando. Mas, com alguma humildade epistêmica, podemos pensar em propostas aparentemente pontuais que, implementadas, potencializariam políticas e movimentos de mudança já existentes.

Esse texto se foca especialmente na não-representatividade identitária. Sabemos que vige atualmente um sistema de cotas nos concursos de ingresso na magistratura, adotado como passo relevante para a promoção da igualdade racial no Judiciário.

Diante da inefetividade do sistema de cotas, as propostas a seguir partem do disposto no artigo 3º da Resolução nº 203/2015 para potencializar os objetivos de tal sistema. E, para isso, é preciso entender quais são os principais obstáculos para o acesso de candidatos negros à magistratura. As discussões travadas diretamente com coletivos negros demonstram que tais obstáculos são, hoje, de cunho financeiro, estrutural e procedimental.

Esses obstáculos são em geral tratados como neutros. Afinal de contas, qualquer pessoa pode enfrentá-los – e a narrativa dominante sobre o concurso publico é o de que ele envolve “sacrifício e dedicação”. A prática revela, no entanto, que essas exigências que racialmente parecem ser neutras produzem uma sistemática exclusão do povo negro – produzindo aquilo que chamamos de discriminação indireta. Explico.

Primeiro, concursos custam caro sob várias perspectivas: mesmo a isenção de taxas de inscrição, por exemplo, não resolve problemas como as despesas para a preparação para o concurso, ou gastos com transporte e hospedagem que são comuns especialmente em concursos disputados para o ingresso na magistratura. Ora, em um país em que a maior parte da população pobre é negra, esse custo elevado é capaz de inviabilizar boas candidaturas negras.

Há dois caminhos cumulativos que os diversos tribunais podem adotar para mitigar substancialmente o obstáculo financeiro, sem com isso incorrer em custos elevados para o próprio Tribunal e atraindo, dessa forma, mais candidatos negros absolutamente competentes e preparados. Trilhar esses caminhos exige, no entanto, uma postura criativa, capaz de compreender que as estruturas como existem não são necessárias, e que as exigências que normalizamos podem ser apenas entraves dispensáveis.

O primeiro caminho  consiste na simplificação dos procedimentos e exigências do concurso público. Com a criação do CNJ, em sua função de coordenação do judiciário nacional, torna-se sem razão a necessidade de que candidatos se desloquem para Tribunais distantes com o objetivo de entregar documentos ou realizar exames médicos.

Trata-se de procedimentos administrativos que poderiam – e, por isso, deveriam – ser realizados perante qualquer tribunal, sob a coordenação do CNJ. Especificamente quanto à entrega de documentos pessoais, é caso mesmo de reavaliar a sua própria exigência. Afinal, no caso dos documentos públicos, mantidos pelos cartórios que estão submetidos à estrutura judiciária, não há razão para exigir dos candidatos que arquem com despesas adicionais, quando à própria comissão de seleção se pode atribuir competência para acessar os mesmos documentos.

O segundo caminho busca superar os principais obstáculos financeiros ao concurso para a magistratura: gastos com hospedagem e transporte dos candidatos. Em tempos de cortes de gastos no setor público, é cada vez menos simpático propor um auxílio de custos concedido pelos Tribunais aos candidatos pretos e pobres (o que não deve, contudo, ser descartado). Mesmo sem que se adote essa via, no entanto, é possível atingir o mesmo objetivo com outra medida: permitir que candidatos prestem quaisquer concursos públicos para ingresso na magistratura perante o Tribunal de Justiça do Estado em que são domiciliados.

Se a proposta parece estranha, pela novidade, veja-se que ela não é inédita no Brasil. Há 10 anos o Poder Público desenvolve, no âmbito nacional, um processo seletivo cuja organização é centralizada, mas cuja aplicação é absolutamente descentralizada.

Candidatos do Brasil inteiro prestam verdadeiros concursos públicos em suas cidades e estados, visando ao ingresso em instituições longínquas. Com isso, os melhores candidatos podem ocupar vagas nestas diferentes instituições, sem que a distância inicial se torne obstáculo para eles.

Ora, se o Exame Nacional do Ensino Médio (o Enem) é possível – aplicado a milhões de candidatos anualmente e com resultados tão positivos ao longo de uma década – então devemos aprender com ele.

A proposta que se apresenta, então, consiste em que o CNJ exerça sua função de coordenação para auxiliar os diferentes Tribunais estaduais e federais na aplicação das fases escritas e, eventualmente, até mesmo nas fases orais dos concursos públicos.

A proposta é simples: cada candidato deve poder optar por realizar as fases escrita ou oral de um determinado certame perante o Tribunal de Justiça do estado em que é domiciliado. Assim, aberto por exemplo o concurso público para ingresso na magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, as fases escritas do exame seriam aplicadas não só neste Tribunal, como também na sede dos demais Tribunais de Justiça.  Como no Enem, o CNJ auxiliaria na remessa segura das provas ao Tribunal responsável pelo certame, para sua correção.

Quanto à fase oral, sabe-se que o isolamento social imposto pela atual pandemia levou a implementação de mecanismos de teleconferência em todo o Poder Judiciário – há notícias, inclusive, de provas orais aplicadas em concursos públicos por meio desses sistemas. Assim, mesmo essas fases poderiam ser aplicadas remotamente, sempre resguardando a autonomia do Tribunal a quem se dirige o certame (com relação a conteúdo, correção e condução do processo em geral).

A proposta é inovadora, mas a pergunta que se deve fazer é simples: para que gerar para os candidatos custos de deslocamento e hospedagem desnecessários e cujo único efeito é excluir quem não pode incorrer nessas despesas?

Especialmente quando essas pessoas são, majoritariamente, pessoas negras que veem seus horizontes de possibilidade na magistratura limitados pelos custos de uma passagem de ônibus ou avião e de uma hospedagem em hotel de baixo custo em um estado distante?

Além desta proposta, formulada no plano financeiro, devem-se somar ainda medidas no plano estrutural ou organizacional para a potencialização dessa permeabilidade institucional do Poder Judiciário. Ninguém ingressa na magistratura por si só – e eventuais exceções apenas comprovam a regra.

Ser aprovado em um concurso publico difícil e disputado envolve estruturas – familiares, financeiras, emocionais, sociais.

Para superar esse obstáculo – a falta de acesso a estruturas que permitem uma formação adequada para um concurso público- é possível adotar pelo menos duas medidas: amplificar as políticas de cotas para o ingresso de alunos negros nas escolas de magistratura, inclusive com a concessão de bolsas para os que sejam hipossuficientes; e fomentar a criação e manutenção grupos de estudos permanentes de estudantes negros em preparação para concursos públicos.

Este último aspecto, se aprofundado, exige ainda uma revisão normativa específica: a Resolução nº 226/2016 do CNJ muito acertadamente vedou a possibilidade de mentorias por magistrados, realizadas em favor de indivíduos ou grupos com a finalidade de preparação para concursos públicos. A medida é acertada porque geraria desproporcional desvantagem inadmissível para aqueles com a capacidade econômica de arcar com tais mentorias (além de gerar preocupações republicanas razoáveis).

Fato é, no entanto, que tais mentorias – realizadas a título gratuito – podem promover objetivos opostos quando autorizadas em favor de pessoas negras. Afinal, pessoas negras encontram obstáculos sistemáticos a acessar referenciais profissionais e acadêmicos que as auxiliem na preparação para concursos públicos.

Lembro, mais uma vez, que a natureza sistêmica e institucional do racismo implica também que pessoas brancas, em proporção absolutamente superior às demais, possam ter acesso informal a magistrados, promotores, defensores – tudo a facilitar sua “ambientação” e acesso aos conhecimentos necessários para um bom desempenho em concurso público.

Mentorias autorizadas, portanto, no contexto de grupos de estudos voltados a pessoas negras podem reduzir essa desigualdade antirrepublicana, promovendo o objetivo de inclusão e promoção da igualdade racial na estrutura Judiciária.

Por fim, no plano procedimental, não podemos ignorar a pressão psicológica que um concurso público representa para seus milhares de candidatos. Se as fases escritas exigem o centramento individual do candidato, a fase oral dos concursos, então, posicionam os candidatos e candidatas perante um Judiciário que, como já visto, não representa adequadamente a diversidade racial brasileira.

Para candidatos negros, estar diante de uma banca composta por magistrados exclusivamente brancos reforça os mecanismos psicológicos de subalternização e erosão da autoestima que podem impactar desproporcionalmente a performance de um candidato.

Nesse sentido, é importante que o procedimento dos concursos seja pensado também de forma a minimizar tais mecanismos, a começar pela exigência de diversidade racial nas bancas dos concursos de ingresso na magistratura e nas comissões organizadoras dos concursos como um todo – permitindo, assim, que os certames sejam reformulados para que também incorporem as discussões sobre discriminação e racismo.

Duas outras breves notas acerca das contribuições apresentadas ao GT Igualdade Racial no Judiciário: é preciso, ainda, romper com as difuculdades quanto à não-representatividade argumentativa e simbólica. Com relação à primeira, que decorre dos limites hermenêuticos e epistemológicos enfrentados por magistrados e profissionais do Direito em geral, é o momento de potencializar, nos cursos de formação e de atualização de magistrados, os debates específicos acerca do chamado racismo institucional ou estrutural e suas repercussões sobre o direito.

Estes cursos podem e devem ser realizados e idealizados em estrita proximidade com juristas negros, mas também devem considerar perspectivas interdisciplinares que ampliem os horizontes do saber jurídico. Quanto à não-representatividade simbólica do Poder Judiciário, é importante – entre outros – dar início a um debate acerca da imagem pública do acesso às instalações do Poder Judiciário.

É preciso que o Poder Judiciário estruture grupos permanentes de diálogo com a sociedade – e de recebimento de denúncias – quanto ao tema do racismo. Mas há aspectos aparentemente mais prosaicos que são igualmente relevantissimos. Em sua fala na mencionada audiência, o desembargador Roger Raul Rios mencionou a estigmatização causada pelos elevadores de serviço nos prédios dos tribunais.

Somo, aqui, a necessidade de revisão das regras de vestuário para acesso das pessoas aos diversos tribunais – uniformes, se necessários, são para profissionais, não para cidadãos que devem ter seu acesso franqueado às instalações públicas.

Nada perde o Poder Judiciário por permitir, para usar um exemplo que deveria ser inconcebível, que um homem de bermudas ingresse em suas instalações. Se essa exigência, que beira um elitismo retrógrado, não parece ter repercussões raciais (e sociais), é necessário dar dois passos atrás e abrir novamente nossos olhos.

Em síntese, portanto, eis as propostas apresentadas ao GT Igualdade Racial e a que se somaram outras contribuições apresentadas dos mais diversos grupos e indivíduos da sociedade civil:

1. Estabelecer que a entrega de documentos e realização de exames médicos, em concursos para ingresso na magistratura, seja realizada perante qualquer Tribunal de Justiça (independentemente do Tribunal a que se destine o certame), cabendo ao CNJ auxiliar administrativamente os tribunais na coordenação da obtenção e remessa de tais documentos;

2. Atribuir competência às comissões organizadoras dos concursos públicos para obterem diretamente junto aos estabelecimentos cartorários os documentos pessoais públicos dos candidatos, igualmente com a colaboração do CNJ;

3. Descentralização da aplicação de fases escrita e oral em concursos públicos de ingresso na magistratura, permitindo aos candidatos realizarem os exames perante o Tribunal de Justiça do Estado de seu domicílio, cabendo ao CNJ auxiliar administrativamente os tribunais no transporte seguro dos materiais de exame e na manutenção dos mecanismos informáticos para realização remota de fases orais;

4. Amplificação das políticas de cotas, inclusive com a concessão de bolsas, em escolas da magistratura vinculadas aos diferentes tribunais;

5. Implementação de grupos de estudo permanentes voltados a candidatas e candidatos negros, autorizando-se atividades de mentoria por magistrados, desde que voltadas especificamente para esses grupos, com a devida revisão da Resolução nº 226/2016 do CNJ;

6. Garantia de participação de pessoas negras em comissões organizadoras e bancas de concursos públicos para ingresso na magistratura;

7. Estruturação e oferta, nos cursos de formação e de aperfeiçoamento dos magistrados, de módulos específicos tratando de temas atinentes ao racismo institucional e sistêmico, com a inclusão de professoras e professores negros;

8. Estabelecimento de grupos permanentes de diálogo entre Judiciário e sociedade civil em temas referentes ao racismo;

9. Revogação de normas de vestuário nos tribunais para assegurar acesso pela cidadania.

Para além de alterarem concepções normalizadas ao longo de décadas sobre a estrutura e funcionamento do Poder Judiciário, o fato é que a implementação dessas medidas é relativamente simples, não produz impactos negativos para a imagem dos órgãos judiciais e podem, no curto, médio e longo prazo, produzir alterações sem precedentes na capacidade de nossos juízes e juízas tornarem-se agentes de combate ao racismo que permeia nossa sociedade. Um racismo que, apesar de sua força avassaladora, não nos impediu de seguir em frente e sonhar, como Luiz Gama, o sonho de um Brasil igualitário, sem reis e sem escravos.

__________

 

[1] Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School. Professor na FGV Direito Rio.

[2] Luis Roberto Barroso. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: Daniel Sarmento (Org.). Jurisdição Constitucional e Política. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[3] Jane Reis. Representação democrática do Judiciário: reflexões preliminares sobre os riscos e dilemas de uma ideia em ascensão. Jurispoiesis, v. 17, 2014, p. 343-359.

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