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O STF entre a decisão e a prática na ADPF n° 635
BlogJoão Gabriel Madeira Pontes[1]
Eduardo Adami[2]
(originalmente publicado no Jota.info)
– I –
A atuação do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 635, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), tem sido decisiva para garantir, no Estado do Rio de Janeiro, uma política de segurança pública minimamente preocupada com os preceitos fundamentais da Constituição de 1988. A ação, como se sabe, busca reverter quadro de violações generalizadas de direitos humanos, provocadas pelo governo fluminense no campo da segurança – quadro que se agravou no contexto da pandemia do novo coronavírus. E o que foi feito até agora, em termos práticos?
Em sede de cautelar incidental postulada e concedida em junho deste ano, posteriormente referendada pelo colegiado, o ministro Edson Fachin determinou a interrupção das operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro, enquanto durar a pandemia, salvo em hipóteses “absolutamente excepcionais”, que devem ser comunicadas imediatamente ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Nesses casos extraordinários, também devem ser adotados cuidados especiais, para não colocar em risco ainda maior a população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária.
Em agosto, no julgamento das liminares originais, o Plenário da Suprema Corte deferiu outras importantes medidas para enfrentar os problemas apontados na petição inicial da ADPF n° 635. Citem-se, por exemplo, a restrição ao uso de helicópteros, o estabelecimento de diretrizes para operações próximas a escolas, creches, hospitais e postos de saúde, a orientação para preservação de vestígios de crimes cometidos em operações policiais e sua adequada documentação, bem como a determinação de investigação, pelo Ministério Público, de agentes de segurança pública suspeitos de envolvimento em infrações penais, principalmente nos casos em que a vítima for criança ou adolescente.
Os resultados da atuação do STF foram absolutamente positivos. Mais de 100 vidas foram poupadas por mês, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública. Se comparados ao mesmo período no ano passado, os meses que se seguiram à suspensão das operações obtiveram queda superior a 70% nas mortes por intervenção de agente do Estado. A média de 148,8 vidas ceifadas por mês entre janeiro e maio caiu para 46,5 no intervalo de junho a setembro. Vale notar, nesse ponto, que falamos aqui majoritariamente de vidas negras e faveladas. Por outro lado, de acordo com o ISP, o conjunto de crimes violentos letais intencionais teve sua menor série histórica desde 1999. A queda também alcançou os números de roubos de carga, de veículos e de rua. Portanto, ficou em xeque, de forma definitiva, a tese inconstitucional de que uma política de segurança pública violenta seria a solução adequada para as questões enfrentadas pelo Estado.
– II –
Infelizmente, as conquistas já alcançadas estão em risco. É que a proibição de operações durante a pandemia, salvo em hipóteses excepcionais, começou a ser desrespeitada. A afronta à decisão do STF foi, inclusive, documentada em entrevista concedida pelo novo secretário da Polícia Civil, o delegado Allan Turnowski. Após afirmar que gostaria de subir as favelas com tanques e que utilizaria mais de um helicóptero em operação policial, Turnowski disse: “[…] a violência no Rio não é um caso de exceção? Quando o STF afirma que a polícia só pode trabalhar em situações de exceção, estamos totalmente respaldados. Isso não impede as ações da polícia. Já estamos alinhados com a decisão”.
O desrespeito ao comando e à autoridade da Suprema Corte é óbvio e beira o cinismo. O malabarismo retórico do novo secretário busca ignorar, de maneira deliberada, toda a construção argumentativa feita pelo STF para chegar à conclusão diametralmente oposta à do Tribunal. E os efeitos da fala do secretário já se fazem sentir nas estatísticas. Levantamento do Observatório de Segurança Pública do Rio de Janeiro apontou aumento assustador da letalidade policial em outubro, com crescimento de 425% nas mortes provocadas pela polícia, em comparação com os índices do mês anterior. No mesmo sentido, a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial identificou crescimento de 117,6% nas operações policiais na Baixada Fluminense, que saltaram de 17 em agosto e setembro, para 37 em outubro.
O partido arguente e os amici curiae que atuam na ADPF n° 635 também relataram intensificação das operações policiais nas favelas do RJ, com a retomada das violações a direitos – como arrombamento de casas, destruição de bens, furtos, torturas, dentre outras ilegalidades –, principalmente nos municípios do Rio de Janeiro, Niterói, Nova Iguaçu e Duque de Caxias. Tais operações geraram tragédias que ganharam maior notoriedade, como a morte de Gabriel Ribeiro Marcondes, neto do Neguinho da Beija-Flor, enquanto trabalhava, e de Caio Gomes Soares, estudante de Educação Física da UERJ, dentro de casa, assim como o caso de Maiara Oliveira da Silva, que estava grávida de cinco meses quando foi baleada, e que acabou perdendo seu bebê.
Desse modo, já foi requisitado ao relator, ministro Edson Fachin, que intime o Governador do Estado do Rio e os Secretários de Estado da Polícia Militar e da Polícia Civil para prestarem informações acerca das operações já realizadas. As autoridades deverão esclarecer, em suas respostas, quais os motivos que justificaram as operações e os critérios utilizados para identificar a extraordinariedade da situação e os cuidados especiais adotados. No período em que parece ocorrer a retomada do aumento de casos de contágio por coronavírus e de internações (algo como uma “segunda onda”, já verificada em outros países), as razões que fundamentaram a interrupção das operações ganham relevo ainda maior. Logo, o STF deve atuar de forma incisiva para garantir a autoridade da sua decisão e a manutenção dos excelentes resultados produzidos até aqui.
– III –
Também é necessário que o STF conceda os outros pedidos cautelares originalmente formulados na petição inicial da ADPF n° 635, de forma a aprofundar as mudanças, garanti-las no longo prazo e adequar verdadeiramente a política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro aos ditames da Constituição de 1988. A suspensão das operações policiais durante a pandemia, salvo em hipóteses excepcionais e justificadas, mostrou-se um grande sucesso, mas seus benefícios têm prazo de validade. Cumpre lembrar, mais uma vez, que falamos aqui de centenas de vidas negras e faveladas salvas por mês.
Sob tal perspectiva, uma das mais importantes medidas postuladas na ADPF n° 635, porém ainda não deferida pela Suprema Corte, é a elaboração de plano, pelo Estado do Rio de Janeiro, “visando à redução da letalidade policial e ao controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança fluminenses, que contenha medidas objetivas, cronogramas específicos e previsão dos recursos necessários para a sua implementação”. Tal plano, que será submetido à aprovação e ao monitoramento do STF, deverá abarcar, no mínimo, aspectos de treinamento e reciclagem dos policiais, inclusive com sensibilização sobre o racismo estrutural; elaboração de protocolos públicos de uso proporcional e progressivo da força, bem como de abordagem e busca pessoal, de forma a minimizar a filtragem racial; e medidas de melhoria nas condições de trabalho dos agentes de segurança, com garantia de acompanhamento psicológico e previsão de afastamento temporário das funções de policiamento ostensivo nos casos de envolvimento com mortes em operações policiais.
O principal argumento desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal para negar a concessão do plano não convence. Na visão da Corte, a medida não teria utilidade, uma vez que, no caso Favela Nova Brasília v. Brasil, já houve condenação em igual sentido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nessa linha, de acordo com o voto do ministro Edson Fachin, a existência de condenação internacional anterior tornaria a decisão do STF inócua, supérflua, desnecessária. Não é assim. A rigor, a mora do Estado brasileiro em cumprir a condenação internacional deve reforçar, não arrefecer, a necessidade de atuação da Suprema Corte. Afinal, é o Supremo que possui os meios coercitivos para efetivamente fazer com que os direitos fundamentais sejam cumpridos em âmbito doméstico, sobretudo em caso tão sensível de violação a esses direitos.
A elaboração de plano de redução de letalidade que aborde todos os aspectos apontados, com prazos e metas bem definidos, é a única providência apta a genuinamente adequar a segurança pública fluminense ao marco constitucional de respeito aos direitos fundamentais. Como se pode depreender do discurso do novo Secretário da Polícia Civil, a qualquer sinal de desatenção do Supremo ou da sociedade civil, será retomada, com a mesma força de antes, a política de segurança genocida e ineficiente que a população negra e pobre das comunidades do Estado do Rio de Janeiro conhece tão bem.
– IV –
Recentemente, o músico MC Cabelinho foi vítima de censura, tendo sido intimado a prestar informações em processo de apuração pela prática de suposta apologia ao crime. Na verdade, o funkeiro – oriundo do complexo Pavão-Pavãozinho e Cantagalo – traduz em suas músicas o cotidiano de muitos moradores de favela do Rio de Janeiro. Na música Reflexo, a primeira do álbum lançado em 2020, o artista denuncia o impacto do uso desmedido dos helicópteros e da política letal de segurança pública: “O barulho do águia sobrevoando me fez despertar/ Passou no jornal a polícia invadindo e claro que eu ouvi/ A troca de tiro impede outra vez do meu filho estudar/ Quem te enganou que o favelado tá seguro dentro da sua própria casa?/ Quem me garante que uma bala perdida, na hora do tiroteio, nunca vai me achar?”.
A música retrata, como diz o refrão, o reflexo da face mais horrenda do que se passa no morro. São as vidas negras e faveladas as grandes prejudicadas pela política de segurança pública panfletária e belicista, que produz mortes e violência, mas não segurança. Como disse outro morador de favela à reportagem da RioOnWatch, “[t]em que ter alguém para gritar por nós! Porque nossa voz é muito difícil de ser ouvida pela nossa elite”. A ADPF n° 635 já levou esse grito ao órgão máximo do Judiciário, o guardião da Constituição. Agora, resta ao STF garantir que essa voz continue sendo ouvida na prática, sob pena de perdê-la entre as centenas de páginas de um processo judicial.
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[1] Advogado e mestre em Direito Público na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[2] Estagiário da Clínica UERJ Direitos e graduando em Direito pela UERJ.
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